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Revisionismo histórico, patrimônio e memória no século 21

Sabemos que narrativas sobre o passado têm grande peso na formação de identidades e podem fortalecer lutas políticas. Mas como o revisionismo histórico aparece nesse contexto?

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Revisionismo histórico é um conjunto de narrativas criadas a partir de novos olhares sobre o passado e a historiografia, em especial aos eventos e sujeitos históricos de grande relevância para o presente. Quer entender melhor?

Neste texto, a gente se aprofunda nesse conceito e explica como as questões sobre revisionismo histórico se confundem com o negacionismo e afetam discussões sobre a preservação e a destruição de patrimônios culturais.

O que é revisionismo histórico?

O termo revisionismo histórico define um movimento que busca fazer novas leituras sobre o passado, por meio da revisão de interpretações dos fatos e períodos históricos. Nesse contexto, o revisionismo acontece tanto respaldado pelo trabalho científico e metodológico do historiador, quanto de forma irresponsável, servindo a interesses de alguns grupos. 

A revisão feita a partir de métodos aceitos pela historiografia tem como base um questionamento ou uma hipótese, enquanto aquela feita para negar ou distorcer um acontecimento ou período histórico tem início em uma resposta.

Ou seja, a principal diferença entre elas é que o trabalho do historiador parte de uma pergunta, respondida utilizando a pesquisa histórica; já uma revisão feita sem fundamento começa com a resposta dada e uma investigação distorcida para justificar aquilo que se deseja encontrar ou provar. 

Sabemos que narrativas sobre o passado têm grande peso na formação de identidades, além disso, podem fortalecer lutas políticas ou manipular pessoas a defenderem alguém ou grupo de pessoas. Diante disso, o revisionismo acaba funcionando como uma forma de utilizar o passado de maneira política, mas não é a única. 

Governos totalitários, por exemplo, tendem a se apoiar em narrativas (nem sempre verdadeiras) sobre o passado a fim de construir uma base de apoio para suas ideologias. Adolf Hitler, na Alemanha do início do século 20, discursou sobre um passado germânico glorioso, a partir da memória do Sacro Império Romano-Germânico, para consolidar os ideais nazistas de exclusão social e expansão territorial. 

Revisionismo x negacionismo: quais as diferenças?

A principal diferença entre revisionismo e negacionismo é que o primeiro busca revisar leituras feitas a respeito do passado; enquanto o segundo quer apenas negar fatos históricos comprovados.

Como dito anteriormente, o revisionismo histórico é um termo utilizado para descrever esse novo olhar sobre o passado, o que exigiria rigor científico, próprio da ciência histórica. No entanto, também acontece a partir de um lugar de senso comum, preconceitos e “achismos”, sem reflexão, compreensão ou comprovação alguma. 

Dessa forma, o revisionismo histórico pode servir ao negacionismo, e se confundir com ele. Por exemplo, ao revisar a história do Holocausto de forma irresponsável, é possível distorcer fatos e fontes para negar o genocídio de judeus e ciganos. 

Porém, o revisionismo é diferente do negacionismo histórico. O negacionismo nega aquilo que foi estabelecido e comprovado, usando o passado para fundamentar a defesa de ideias que propagam a exclusão social e política de determinados grupos e sujeitos. 

Se feito com ética e a partir de métodos reconhecidos entre historiadores, o revisionismo histórico pode, sim, trazer perspectivas atualizadas sobre determinados acontecimentos ou contextos.

No caso dos negacionistas, é muito comum eles fazerem afirmações sobre eventos que não aconteceram, ao mesmo tempo que negam verdades históricas consolidada. Um exemplo clássico é a negação do Holocausto, fato amplamente documentado.  

Atualmente, vemos o negacionismo histórico atuando especialmente nas redes sociais. Com o auxílio das fake news, grupos negacionistas espalham narrativas falsas sobre o presente e o passado. Assim, em discussões atuais sobre revisionismo histórico, negacionismo e patrimônio, as fake news ocupam papel central. 

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Patrimônio cultural, material e imaterial

Patrimônio cultural é um conjunto de bens com relevância histórica, artística, etnográfica, arqueológica ou paisagística. Atualmente, tais patrimônios se dividem entre materiais e imateriais.

  • Os patrimônios materiais
    São aqueles que contém materialidade, como prédios históricos, vestígios arqueológicos (desenhos rupestres, por exemplo) e outros que contenham materialidade física.
Casarão da Educação e Cultura localizado em Corumbá de Goiás (GO), considerado patrimônio material pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Casarão da Educação e Cultura localizado em Corumbá de Goiás (GO), considerado patrimônio material pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Imagem: Reprodução/Iphan)
  • Os patrimônios imateriais
    São aqueles que não se delimitam por uma materialidade, como práticas culturais diversas, a culinária tradicional, expressões artísticas, práticas artesanais, literatura popular, lendas, festas populares etc. Ou seja, tudo que não possui uma materialidade concreta, como edificações. 
Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural é um patrimônio imaterial que consiste em performances musicais, dramáticas e coreográficas que resultam da fusão de manifestações populares em Pernambuco
Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural é um patrimônio imaterial que consiste em performances musicais, dramáticas e coreográficas que resultam da fusão de manifestações populares em Pernambuco (Imagem: Reprodução/Iphan)

No Brasil o órgão responsável pelo gerenciamento e pela pesquisa e preservação de patrimônios culturais é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou simplesmente Iphan. Mas as discussões sobre o que deveria ou não ser patrimônio vão muito além desse órgão estatal, e estão sempre permeadas por disputas de narrativas. 

Essas disputas envolvem, principalmente, o que é necessário preservar, enquanto patrimônio cultural e histórico, partindo do princípio de relevância social e histórica, ou não. Há ainda disputas sobre memória, que avaliam o que a sociedade deveria ou não lembrar.

Patrimônio histórico e revisionismo: preservar ou destruir?

As disputas sobre patrimônio e memória são atravessadas pelo revisionismo e pelo negacionismo. Afinal, se para determinados grupos um fato histórico não teria acontecido, ele não precisa ser lembrado. 

Além disso, esses embates vêm à tona de tempos em tempos, quando a construção, a preservação e a destruição de patrimônios materiais entra em discussão no âmbito público. 

Atualmente, novas perspectivas historiográficas fomentaram a ação de movimentos que derrubaram e danificaram estátuas de figuras históricas que participaram ou foram responsáveis por genocídios, governos autoritários, crimes de guerra etc. 

Por exemplo: estátuas do colonizador da América, Cristóvão Colombo, que liderou o início do genocídio dos povos ameríndios, foram alvo de manifestações por todo o continente americano.

Manifestações pela remoção da estátua de Cristóvão Colombo aconteceram em Santo Domingo, na República Dominicana - revisionismo histórico
Manifestações pela remoção da estátua de Cristóvão Colombo aconteceram em Santo Domingo, na República Dominicana (Imagem: Adobe Stock)

É possível entender essa prática como forma de protesto e contestação à construção de uma memória de heroísmo que se sobrepõe à memória dos milhões de mortos durante o processo de conquista da América. 

Contexto brasileiro

No Brasil, recentemente, as discussões sobre patrimônio vieram à tona quando manifestantes incendiaram a estátua do bandeirante Borba Gato que fica na grande São Paulo.

Ao longo da história do Brasil, em especial durante os séculos 19 e 20, criaram-se narrativas de heroísmo para os bandeirantes, que, atualmente, têm sido questionadas. Isso porque, durante a colonização do país, eles caçaram e escravizaram indígenas, sequestraram escravizados fugidos e destruíram quilombos. 

Antes vistos como "desbravadores", essas figuras receberam outro olhar de historiadores e movimentos sociais. Eles reforçam os impactos da colonização, do genocídio indígena e da escravização de africanos e afrodescendentes que perduram sobre a sociedade brasileira. 

Outro exemplo é a destruição da placa da Rua Marielle Franco, homenagem feita por manifestantes à vereadora assassinada em 2018.

Placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco
Placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco (Fernando Frazão/Agência Brasil)

A placa, que fica no Rio de Janeiro, foi destruída por dois políticos ligados à extrema-direita, na defesa de uma narrativa contrária aos direitos humanos. 

Reflexões sobre revisionismo histórico

É importante compreender que o passado tem uma carga política significativa no presente.

O presente é resultado de processos que ocorreram no passado, assim, narrativas sobre o passado afetam nossa visão sobre o presente.  

Existem várias formas de lembrar o passado, por meio da preservação - ou não preservação - de patrimônios históricos e ao manter a memória de sujeitos viva no presente. É só pensar, por exemplo, em ruas, estátuas, prédios públicos e praças que levam o nome de pessoas que, de alguma forma, obtiveram relevância política e social. 

No entanto, o espaço público se mantém como local de disputas de memória e de narrativa, entre aquilo que deve ser lembrado, como ser lembrado, e aquilo que deve ser esquecido.

Como os temas do patrimônio e memória caem no Enem e nos vestibulares

No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) as questões sobre patrimônio e memória abordam acontecimentos e períodos históricos, relacionando-os à construção da memória dos heróis nacionais, às práticas culturais e à identidade de povos.

Exemplo 1

(Enem 2022) Hoje sou um ser inanimado, mas já tive vida pulsante em seivas vegetais, fui um ser vivo; é bem verdade que do reino vegetal, mas isso não me tirou a percepção de vida vivida como tamborete. Guardo apreço pelos meus criadores, as mãos que me fizeram, me venderam, e pelas mulheres que me usaram para suas vendas e de tantas outras maneiras. Essas pessoas, sim, tiveram suas subjetividades, singularidades e pluralidades, que estão incorporadas a mim. É preciso considerar que a nossa história, de móveis de museus, está para além da mera vinculação aos estilos e à patrimonialização que recebemos como bem material vinculado ao patrimônio imaterial. A nossa história está ligada aos dons individuais das pessoas e suas práticas sociais. Alguns indivíduos consagravam-se por terem determinados requisitos, tais como o conhecimento de modelos clássicos ou destreza nos desenhos.

FREITAS, J. M.; OLIVEIRA, L. R. Memórias de um tamborete de baiana: as muitas vozes em um objeto de museu.
Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, n. 14, maio-ago. 2020 (adaptado)

Ao descrever-se como patrimônio museológico, o objeto abordado no texto associa a sua história às

a) habilidades artísticas e culturais dos sujeitos.

b) vocações religiosas e pedagógicas dos mestres.

c) naturezas antropológica e etnográfica dos expositores.

d) preservações arquitetônica e visual dos conservatórios.

e) competências econômica e financeira dos comerciantes.

Resposta: [A]
O objeto fala de seus "criadores" e de como suas "subjetividades, singularidades e pluralidades" foram incorporadas a ele. Além disso, destaca que sua história está ligada a “dons individuais das pessoas e suas práticas sociais”, ou seja, às habilidades artísticas e culturais dos sujeitos.

Exemplo 2

(Enem 2010) As ruínas do povoado de Canudos, no sertão norte da Bahia, além de significativas para a identidade cultural dessa região, são úteis às investigações sobre a Guerra de Canudos e o modo de vida dos antigos revoltosos.

Essas ruínas foram reconhecidas como patrimônio cultural material pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) porque reúnem um conjunto de

a) objetos arqueológicos e paisagísticos.

b) acervos museológicos e bibliográficos.

c) núcleos urbanos e etnográficos.

d) práticas e representações de uma sociedade.

e) expressões e técnicas de uma sociedade extinta.

Resposta: [A]
Como vimos anteriormente, os patrimônios materiais podem se constituir de vestígios arqueológicos, a exemplo das ruínas do povoado de Canudos.

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Bárbara Donini

Analista de História no Aprova Total. Licenciada (Udesc) e mestre (UFSC) em História, tem experiência na área de educação, no Ensino Fundamental e em curso pré-vestibular.

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