Como reconhecer a intertextualidade em uma obra?
Esse recurso pode se manifestar como alusões, paródias, citações e outras formas que permitem os textos conversarem entre si; entenda
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A intertextualidade se manifesta quando uma obra faz referência, dialoga ou se inspira em outra! Além disso, sua importância se estende por muitas áreas do conhecimento, influenciando não apenas a literatura, mas também o cinema, a música e a arte.
Ou seja, entender os tipos de intertextualidade faz com que a gente consiga perceber como as produções se comunicam e como essas conexões enriquecem o conteúdo das obras em si.
NAVEGUE PELOS CONTEÚDOS
O que é intertextualidade?
A intertextualidade pode ser compreendida como um diálogo entre dois ou mais textos, em que um texto-fonte é utilizado como referência para a criação de um novo texto, o intertexto.
Esse diálogo pode acontecer de maneiras variadas, incluindo alusões, paródias, citações, e outras formas que permitem que um texto faça referência a outro anteriormente produzido.
Tal fenômeno não se limita apenas à literatura, ele é também encontrado no cinema, na música e na pintura. Um exemplo clássico de intertextualidade na pintura é a reprodução de diferentes versões da obra Mona Lisa (1503), de Leonardo da Vinci, em que cada nova versão dialoga com a obra original, criando novas interpretações e significados.
Na prática, a intertextualidade pode ser explícita, quando há uma indicação clara do texto-fonte, ou implícita, em que o diálogo se estabelece de maneira mais sutil, sendo muitas vezes perceptível apenas para aqueles que conhecem a referência original.
Portanto, entender a intertextualidade é essencial para uma leitura mais aprofundada e crítica de qualquer texto, pois revela as várias camadas de significado que estão interligadas através do diálogo entre as obras.
Tipos de intertextualidade
A intertextualidade se manifesta de várias formas, cada uma com suas características e efeitos nos textos em que aparecem. Exploraremos aqui quatro tipos principais: intertextualidade explícita, intertextualidade implícita, paródia e pastiche, além de citação e alusão.
Intertextualidade explícita
Ocorre quando o texto faz uma referência direta e clara a outra obra. É facilmente identificável pelo leitor, pois geralmente inclui citações ou menções explícitas ao texto-fonte.
Podem ser encontradas em resenhas ou trabalhos acadêmicos que discutem e analisam textos específicos. Também pode ser encontrada no uso de argumentos de autoridade para reforçar um posicionamento.
Exemplo
O renomado cientista Stephen Hawking afirmou em seu livro Uma Breve História do Tempo que o universo está em constante expansão.
Intertextualidade implícita
Diferente da explícita, a intertextualidade implícita não apresenta marcas óbvias que conectam um texto a outro. Por isso, requer uma leitura mais atenta e um conhecimento prévio para que o leitor identifique as referências.
Esse tipo de intertextualidade é comum em obras que fazem uso de ironia ou que dialogam com temas e estilos sem citar diretamente suas fontes.
Exemplo
"E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa, assume o jogo, faz questão de se cuidar (uhu!)
Nem serva, nem objeto, já não quer ser o outro, hoje ela é um também"
(Desconstruindo Amélia - Pitty)
Para o pleno entendimento da canção de Pitty, é preciso associá-la à música Ai, que saudades da Amélia (1942), de Mário Lago. Confira um trecho a seguir:
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, o que se há de fazer!
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Paródia e pastiche
A paródia utiliza o texto original para criar uma nova obra com intenção crítica ou humorística, mantendo a estrutura, mas alterando o conteúdo para provocar reflexão ou entretenimento.
Exemplo
Que Manuel Bandeira me perdoe, mas
VOU-ME EMBORA DE PASÁRGADA
Vou-me embora de Pasárgada
Sou inimigo do Rei
Não tenho nada que eu quero
Não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A existência é tão dura
As elites tão senis
Que Joana, a louca da Espanha,
Ainda é mais coerente
do que os donos do país.
(Millôr Fernandes, para Folha de S. Paulo, 2001)
Já o pastiche homenageia ou imita o estilo de outros autores ou obras sem intenção satírica, combinando elementos de diversas fontes para criar algo único.
Citação e alusão
Citações são trechos de textos originais inseridos em um novo contexto, mantendo a fidelidade às palavras do autor original e indicando claramente a fonte.
Exemplo
Segundo Sócrates, “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância.’’
Por outro lado, as alusões são referências mais sutis que não citam diretamente as fontes, mas evocam imagens, personagens ou situações conhecidas, enriquecendo o texto com camadas adicionais de significado.
Exemplo
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
Minha boca procura a ‘Canção do Exílio’.
Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
Onde canta o sabiá!”
(Europa, França e Bahia - Carlos Drummond de Andrade)
Intertextualidade na literatura
Na literatura, a intertextualidade permite que os escritores façam uma série de referências em suas obras, enriquecendo a experiência de leitura e dando novas perspectivas sobre textos antigos e contemporâneos.
Clássicos da literatura
Muitos exemplos de intertextualidade podem ser encontrados em obras clássicas como Ulisses (1920), de James Joyce. Esta obra faz referências à Odisseia de Homero, incorporando elementos da mitologia grega e estruturas narrativas que criam um paralelo entre as jornadas do personagem Leopold Bloom e Ulisses.
Na literatura brasileira, temos o clássico Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, conhecido como o Otelo brasileiro, uma referência à obra de Shakespeare. Ambas as obras são marcadas por manifestações de ciúme, traição e falta de voz das personagens femininas.
A diferença é que, enquanto a obra de Machado apresenta uma elaboração mais complexa e um final aberto, a de Shakespeare já revela a inocência de Desdêmona no final.
Além de Shakespeare, Machado de Assis faz referência ao livro Divina Comédia (1862), de Dante Alighieri, na sua obra inaugural do realismo, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881).
O conceito de vida após a morte usado pro Machado é um exemplo disso, já que Brás Cubas, o narrador defunto, dialoga com a ideia de contar sua história a partir do além, semelhante à jornada de Dante passando por inferno, purgatório e paraíso.
Literatura contemporânea
A intertextualidade também é muito presente na literatura contemporânea. Na obra de Cristovão Tezza, O Filho Eterno (2007), notamos muitas referências a diversas produções artísticas, mas existem duas mais evidentes.
A primeira é a comparação da rotina diária do menino à maldição de Sísifo, na qual o protagonista, assim como Sísifo, enfrenta uma tarefa interminável e repetitiva, sublinhando a sensação de fardo constante na vida com uma criança que tem síndrome de Down.
A segunda é a analogia do intelecto do filho com os bebês incubados em Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, sugerindo um desenvolvimento mental controlado e limitado, o que ressalta as dificuldades cognitivas enfrentadas pelo filho.
A intertextualidade também pode ser observada em poemas. Confira em Rio de Janeth (2012), escrito por Bruna Beber:
chovem rios
mas aqui é o mar
quem leva a Princesinha
do Braguinha pra cheirar pó
com o Tom e a Garota de Ipanema
e o Vinícius em Copacabana
Drummond nos espera
sentado marcando uma hora
para ver as bailarinas
mexendo as mãos no ar
condicionado do Municipal.
É possível notar a referência a importantes figuras da música e da literatura brasileira, como Braguinha, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade. Essas menções não apenas evocam suas obras, mas também suas conexões com o Rio de Janeiro, especialmente com os bairros icônicos de Copacabana e Ipanema.
Além disso, o poema mescla elementos das canções Copacabana (1946) e Garota de Ipanema (1962) com os escritos de Drummond, criando um diálogo entre diferentes formas de arte e a própria cidade, refletindo sobre a cultura e a história locais.
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Dicas para identificar e interpretar intertextualidades
Para identificar e interpretar intertextualidades de forma eficaz, é essencial compreender como eles podem se manifestar em textos variados. Aqui estão algumas dicas práticas:
- conheça os principais tipos de intertextualidade, como alusão, citação, epígrafe, paráfrase, paródia, pastiche. Cada um deles tem características distintas que ajudam na identificação e interpretação;
- para a intertextualidade explícita, observe marcas claras no texto, como citações diretas ou referências nominais; já a intertextualidade implícita, tenha um olhar mais atento, a fim de captar referências indiretas ou alusões sutis;
- busque conhecimento sobre diferentes obras e autores, pois isso facilita a identificação de alusões e referências. Isso é importante, especialmente, para perceber intertextualidades implícitas, que podem ser discretas e exigir uma compreensão mais profunda do contexto cultural ou literário;
- sempre considere o contexto em que o texto foi escrito. Elementos como a época, as influências culturais e as intenções do autor podem revelar conexões intertextuais significativas;
- desenvolva uma prática de leitura detalhista e questionadora. Ou seja, ao se deparar com um possível elemento intertextual, investigue sua origem e as implicações que trazem para a compreensão do texto. É muito provável que o autor tenha feito algum tipo de intertextualidade com um propósito definido.
Quais são os efeitos da intertextualidade em um texto?
A intertextualidade enriquece os textos pois permite uma ampliação de sentido, criando novas possibilidades interpretativas e deslocando os significados originais. Pode ser um recurso utilizado para aprimorar explicações, apresentar críticas, propor novas perspectivas ou produzir humor.
Por meio da relação entre diferentes textos, a intertextualidade também ocorre no nível formal, pois o autor pode repetir elementos de uma estrutura pré-existente, mas alterar outros aspectos para construir um novo texto. Este processo é evidente em gêneros artísticos como poesia e música, bem como em textos publicitários.
Além disso, as intertextualidades implícita e explícita desempenham papéis distintos. A implícita, ao citar sem evidenciar, pode desafiar o leitor que não conhece o texto original a perceber as relações estabelecidas; enquanto a explícita apresenta referências diretas que são facilmente identificáveis, independentemente do conhecimento prévio do leitor.
Por fim, a intertextualidade não apenas provoca uma ressignificação de textos já conhecidos em novos contextos, como serve de inspiração e criatividade. É ainda um elemento importante para a coerência textual, pois o reconhecimento dos intertextos e seus desdobramentos são indispensáveis para entender os conteúdos expostos de maneira completa.
Resumo: intertextualidade
Confira um resumo sobre o que você leu até aqui:
- intertextualidade é o diálogo entre uma obra e outras, por meio de referências diretas ou inspirações;
- ela pode se manifestar de diversas maneiras, como alusões, paródias e citações, enriquecendo o conteúdo das obras ao estabelecer conexões entre elas;
- entender os tipos de intertextualidade permite identificar como as obras se comunicam e como essas interações adicionam camadas de significado aos textos.
- tipos de intertextualidade:
- explícita (referências claras e diretas, como citações)
- implícita (requer leitura atenta e conhecimento prévio)
- paródia (crítica ou humor por meio de uma nova obra)
- pastiche (homenagem ou imitação de estilo)
- a intertextualidade amplia os significados e permite novas interpretações;
- ela pode aprimorar explicações, apresentar críticas, propor novas perspectivas ou produzir humor;
- ao conectar diferentes textos, a intertextualidade implícita desafia os leitores a perceber as relações estabelecidas, enquanto a explícita facilita a identificação das referências;
- compreender a intertextualidade é essencial para uma leitura crítica e completa.
Como a intertextualidade aparece no Enem e nos vestibulares
Nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e dos principais vestibulares, a intertextualidade é frequentemente explorada, destacando-se como um componente essencial para medir sua capacidade interpretativa.
A análise de intertextualidade nestes exames não requer necessariamente o conhecimento prévio das obras referenciadas, mas sim a habilidade de entender as conexões e o diálogo estabelecido entre os textos.
Exemplo 1
(Enem 2022) Espaço e memória
O termo “Na minha casa...” é uma metáfora que guarda múltiplas acepções para o conjunto de pessoas, de adeptos, dos que creem nos orixás. Múltiplos deuses que a diáspora negra trouxe para o Brasil. Refere-se ao espaço onde as comunidades edificaram seus templos, referência de orgulho, aludindo ao patrimônio cultural de matriz africana, reelaborado em novo território.
O espaço é fundamental na constituição da história de um povo. Halbwachs (1941, p. 85), ao afirmar que “não há memória coletiva que não se desenvolva em um quadro espacial”, aponta para a importância de aspecto tão significativo no desenvolvimento da vida social.
Lugar para onde está voltada a memória, onde aqueles que viveram a condição-limite de escravo podiam pensar-se como seres humanos, exercer essa humanidade e encontrar os elementos que lhes conferiam e garantiam uma identidade religiosa diferenciada, com características próprias, que constituiu um “patrimônio simbólico do negro brasileiro (a memória cultural da África), afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso para sua transmissão e preservação” (SODRÉ, 1988, p. 50).
BARROS, J. F. P. Na minha casa. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
Na construção desse texto acadêmico, o autor se vale de estratégia argumentativa bastante comum a esse gênero textual, a intertextualidade, cujas marcas são
a) aspas, que representam o questionamento parcial de um ponto de vista.
b) citações de autores consagrados, que garantem a autoridade do argumento.
c) construções sintáticas, que privilegiam a coordenação temporal de argumentos.
d) comparações entre dois pontos de vista, que são antagônicos.
e) parênteses, que representam uma digressão para as considerações do autor.
Resposta: [B]
Na construção do texto acadêmico, o autor utiliza a intertextualidade, evidenciada pelas citações de autores consagrados como Halbwachs e Sodré. Essas citações garantem a autoridade do argumento ao reforçar a importância do espaço e da memória na identidade cultural das comunidades de matriz africana no Brasil.
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Exemplo 2
(Unicamp 2022)
Considere o diálogo intertextual entre os dois poemas e assinale a alternativa correta.
a) O texto II parodia o texto I ao deslocar o tema da conectividade no meio digital para o elogio da marginalidade como ato heroico.
b) O texto I parafraseia o texto II ao chamar atenção para a posição marginal imposta a quem resiste à pressão de viver conectado às redes.
c) O texto II alude ao texto I para reforçar a equivalência entre as condições de ficar “off-line” e ser “marginal” em cada contexto.
d) O texto I parodia o texto II para situar como heroico e transgressivo o ato de se desconectar das redes sociais no contexto atual.
Resposta: [D]
O texto I, de 2020, situa o ato de se desconectar das redes sociais como um ato heroico e transgressivo no contexto atual, fazendo uma intertextualidade com o texto II, de 1968, que considera heroico o ato de transgredir as regras impostas por um sistema ditatorial.