Ciências da Natureza

Holocausto brasileiro e a luta antimanicomial no país

Entenda o contexto da luta antimanicomial no Brasil, saiba como se deu a Lei da Reforma Psiquiátrica e por que o livro-reportagem "Holocausto brasileiro", da jornalista Daniela Arbex, é tão importante para evidenciar as histórias de pessoas em sofrimento mental

Acessibilidade

Em 18 de maio, celebra-se o Dia nacional da luta antimanicomial no Brasil, um movimento pela reflexão sobre os direitos das pessoas com sofrimento mental. Nesse contexto, o livro Holocausto brasileiro (2013), da jornalista Daniela Arbex, lança luz sobre os abusos que pacientes do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, viveram durante décadas.

Vale destacar que o Colônia nasceu em 1903, mas se tornou esse lugar passível de analogia aos campos de concentração nazistas especialmente a partir da década de 1940. O número de internos aumentou e estima-se que 70% deles eram militantes políticos, mães solo, gays, alcoólatras, mendigos, pobres, índios, negros, pessoas sem documento, etc.

Holocausto brasileiro - Um dos livros mais vendidos do Brasil, Daniela Arbex entrevistou ex-funcionários e sobreviventes da instituição que atuou com propósito de limpeza social comparável aos regimes mais abomináveis do século 20 (Imagem: Reprodução/Intrínseca)
Daniela Arbex entrevistou ex-funcionários e sobreviventes da instituição que atuou com propósito de limpeza social comparável aos regimes mais abomináveis do século 20 (Imagem: Reprodução/Intrínseca)

Ou seja, esse episódio da nossa história, que ficou conhecido como holocausto brasileiro, é um exemplo dos preconceitos que cercam as doenças mentais e da importância de haver atendimento público humanizado e livre para quem precisa.

A seguir, refletimos sobre aspectos essenciais desse contexto, como o fim dos manicômios no Brasil, a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica, os nomes de quem participou desses movimentos e o impacto da obra Holocausto brasileiro na reparação das violências sofridas e na compreensão deste tema, que pode servir de repertório sociocultural para Enem e vestibulares.

Por que 18 de maio é o Dia nacional da luta antimanicomial?

O dia 18 de maio é considerado o Dia nacional da luta antimanicomial em memória do histórico Congresso de Bauru, realizado em 1987, na cidade que fica no interior de São Paulo.

Nesse evento, profissionais da área da saúde mental, usuários dos serviços psiquiátricos e familiares se reuniram para discutir e propor mudanças no modelo de tratamento psiquiátrico no Brasil.

Como resultado, nasceu o documento “Carta de Bauru”, ou “Manifesto de Bauru”, que abordou os desafios para a construção de uma sociedade livre dos manicômios, espaços que reproduzem muitas práticas de violência e abuso.

A partir dessas reivindicações, buscava-se romper com o modelo tradicional de tratamento que predominava nos hospitais psiquiátricos, e propor a criação de políticas públicas que promovessem a desospitalização e a reinserção social dos pacientes.

Contexto da luta antimanicomial no Brasil

Entre 1970 e 1980, diversos movimentos sociais surgiram no Brasil para reivindicar direitos civis, sociais e humanos. Essas iniciativas contribuíram para a conscientização sobre as condições desumanas nos hospitais psiquiátricos e para a importância de uma abordagem mais respeitosa e inclusiva da saúde mental.

O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) – que contou com a participação popular, inclusive de familiares de pacientes – e o Movimento Sanitário foram dois dos maiores responsáveis por abraçar essa causa.

Na época, o país vivia sob o regime da Ditadura Militar (1964-1985), quando houve um aumento significativo da medicalização e da internação compulsória de pessoas com transtornos mentais. Os hospitais psiquiátricos tornaram-se locais de exclusão e violência, onde os direitos humanos eram frequentemente violados.

A luta pelo direito das pessoas em sofrimento mental

A luta pelo direito das pessoas em sofrimento mental refere-se a um movimento social e político que busca garantir os direitos e a dignidade das pessoas com transtornos mentais.

Seu objetivo principal é a transformação dos modelos tradicionais de tratamento, que historicamente se baseiam na internação compulsória em hospitais psiquiátricos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), que já vinha olhando para essas questões, a partir de 1973, vivenciou uma mudança de paradigma que se refletiu nas suas diretrizes e recomendações. Assim, passou a enfatizar princípios fundamentais da luta antimanicomial, como:

  1. Desinstitucionalização
    A OMS pregava a redução do número de internações em hospitais psiquiátricos e a promoção de serviços de saúde mental comunitários. Visando a reintegração social e a autonomia dos pacientes.
  2. Atenção integral e integrada
    Houve o reconhecimento da importância de uma abordagem integral da saúde mental, que não se limitasse apenas à prescrição de medicamentos ou à hospitalização. Ou seja, envolvesse aspectos sociais, culturais e familiares no tratamento dos transtornos mentais.
  3. Participação dos usuários
    Destacou-se a importância da participação ativa dos usuários de serviços de saúde mental, suas famílias e comunidades na definição das políticas e na gestão dos serviços. Com isso, houve a promoção de uma abordagem mais democrática e inclusiva.
  4. Direitos humanos
    A proteção dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais tornou-se uma preocupação central nas diretrizes da OMS, com ênfase na dignidade, na liberdade e na não discriminação.

De maneira geral, a luta pelo direito das pessoas em sofrimento mental é fundamentada nos princípios dos direitos humanos, da inclusão social e da dignidade da pessoa humana.

Ela busca superar estigmas, discriminações e práticas institucionais desumanizadas, promovendo uma visão mais ampla e integrada da saúde mental.

Protagonistas da luta antimanicomial

Muitos profissionais, ativistas, familiares e pessoas em sofrimento mental se engajaram na transformação do modelo de cuidado psiquiátrico. Entre esses nomes, dois se destacam:

Franco Basaglia (1924-1980)

Franco Basaglia foi um psiquiatra italiano com atuação pioneira na reforma psiquiátrica. Nomeado diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, norte da Itália, em 1961, implementou práticas humanizadas de tratamento e defendeu a desinstitucionalização dos pacientes.

Introduziu-se, então, o conceito de comunidade terapêutica, onde os pacientes psiquiátricos eram mais ativos e participavam das decisões sobre seu próprio tratamento.

Franco Basaglia (1924-1980), psiquiatra italiano que visitou o Colônia e o associou aos campos de concentração nazistas
(Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons)

Ele se formou em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Pádua em 1949, especializando-se posteriormente em psiquiatria.

O trabalho de Basaglia teve um impacto significativo não apenas na Itália, mas em todo o mundo. Sua abordagem humanista inspirou movimentos de reforma psiquiátrica em diversos países, incluindo o Brasil.

Nise da Silveira (1905-1999)

Nise da Silveira nasceu em Maceió, Alagoas, em 15 de fevereiro de 1905. Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, especializando-se posteriormente em psiquiatria.

Em 1944, começou a trabalhar no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, na época, um dos principais hospitais psiquiátricos do país. No local, ela iniciou suas experiências revolucionárias no tratamento de pacientes psiquiátricos, com abordagens terapêuticas criativas e inclusivas.

Nise da Silveira (1905-1999), psiquiatra brasileira
(Imagem: Arquivo Nacional/Reprodução/Wikimedia Commons)

Nise fundou a Casa das Palmeiras, um espaço terapêutico voltado para pacientes psiquiátricos, onde eles podiam se expressar livremente por meio da arte. Além disso, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, que reunia obras de arte produzidas por pacientes como parte do tratamento.

👉 Leia também:

Dia internacional dos direitos humanos (10/12): como o tema aparece nos vestibulares?

Outros nomes

Além de Franco Basaglia e Nise da Silveira, há outros profissionais que, ainda hoje, participam ativamente na luta antimanicomial:

  • Paulo Amarante
    Psiquiatra brasileiro que participou da criação da política de saúde mental no país e foi coordenador do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).
    Também é líder do Grupo de Pesquisas Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao Ministério da Ciência.

  • Carla Biancha Angelucci
    Psicóloga e professora associada no Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação (EDF) na Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo (USP).
    Atua em defesa dos direitos humanos e contra internações inadequadas em hospitais psiquiátricos. Preza pela construção de uma rede de cuidado comunitária e integrada.

  • Leonardo Pinho
    Sociólogo, é conhecido por sua atuação na reforma psiquiátrica no estado do Ceará, onde implementou políticas de redução de leitos psiquiátricos e fortalecimento da rede de atenção psicossocial.
    Pinho já foi presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Atualmente, é Diretor de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua pela pasta do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil

Oficialmente conhecida como Lei 10.216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica foi um marco na história da saúde mental no Brasil.

Sua aprovação aconteceu em 6 de abril de 2001, regulamentada pelo Decreto 7.179/2010, e representou uma mudança significativa no modelo de assistência psiquiátrica. A prioridade, então, passou a ser o tratamento em liberdade, a inclusão social e o respeito aos direitos humanos das pessoas em sofrimento mental.

A reportagem Loucura e liberdade: saúde mental em Barbacena, produzida pela TV Brasil, mostra entrevistas com pessoas que estiveram no Colônia nas décadas de 1960 e 1970, e que viveram o momento de reforma psiquiátrica no país.

A Lei da Reforma Psiquiátrica estabeleceu diretrizes para a organização da assistência em saúde mental. Por exemplo, a criação de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos (a exemplos dos CAPS), ambulatórios de saúde mental, residências terapêuticas, entre outros.

Ela ainda proíbe a construção de novas instituições manicomiais e estabelece critérios rigorosos para as internações involuntárias. O objetivo é garantir a vontade do paciente no tratamento e a revisão periódica desses casos.

Principais mudanças

As principais mudanças estabelecidas pela Lei 10.216/2001 foram:

  • redução do número de leitos em hospitais psiquiátricos e aumento da oferta de serviços comunitários;
  • favorecimento da desinstitucionalização e da reinserção social das pessoas em sofrimento mental;
  • fortalecimento da atenção integral em saúde mental, com equipes multiprofissionais, tratamento humanizado, acesso a medicamentos e terapias adequadas;
  • incentivo à participação dos usuários, familiares e da sociedade civil na gestão e fiscalização dos serviços;
  • combate ao estigma e à discriminação, promovendo a inclusão social, o exercício da cidadania e a autonomia das pessoas em sofrimento mental.

Holocausto brasileiro: retrato do maior hospício do Brasil

Barbacena, em Minas Gerais, ficou conhecida, em 1903, como "cidade dos loucos". O apelido veio com a abertura de sete instituições psiquiátricas no município, entre eles, o Hospital Colônia. Apesar de ter nascido com o propósito de tratar pessoas em sofrimento mental, tornou-se um lugar onde a tortura era prática liberada.

Holocausto Brasileiro - pátio com internos do Hospital Colônia (Imagem: Reprodução/Acervo Público Mineiro)
Pátio com internos do Hospital Colônia (Imagem: Reprodução/Acervo Público Mineiro)

Muitos pacientes desembarcavam ali de trem, vindos de várias regiões do Brasil, e eram separados por sexo, idade e características físicas. Os campos de concentração nazistas recebiam pessoas que chegavam da mesma forma, um dos motivos que fez com que, mais tarde, fosse estabelecido um paralelo com a ideia de holocausto brasileiro.

Vista frontal da Estação Ferroviária de Barbacena em 1938 (Imagem: Reprodução/Acervo Público Mineiro)
Vista frontal da Estação Ferroviária de Barbacena em 1938 (Imagem: Reprodução/Acervo Público Mineiro)

Essa, porém, não era a principal semelhança. No livro-reportagem Holocausto brasileiro, que também inspirou um documentário homônimo em 2016 e a série Colônia (2019), é possível ler sobre os inúmeros relatos de torturas físicas e psicológicas.

A jornalista Daniela Arbex buscou quem pudesse falar sobre a estrutura do hospital e compartilhar suas próprias histórias, já que eram sobreviventes. Estima-se que 60 mil pessoas morreram no Colônia enquanto ele esteve em atividade.

👉 Leia também:

Dia internacional em memória das vítimas do holocausto: lembrar para não repetir

Sobrevivendo ao holocausto brasileiro

O livro não se limita a relatar os fatos, pois traz à tona reflexões profundas sobre a saúde mental, os direitos humanos e a responsabilidade da sociedade e das instituições.

Segundo os relatos que Arbex ouviu e as famosas imagens feitas em 1961, pelo então fotógrafo da revista Cruzeiro, Luiz Alfredo, a desumanização tomava o Colônia. O hospital, que poderia receber até 200 pessoas, chegou a ter 5 mil.

Internos do Hospital Colônia que também foram retratados no livro Holocausto Brasileiro - Imagem Reprodução Luiz Alfredo/O Cruzeiro/Fundação Municipal de Cultura de Barbacena, 1961
(Imagem: Reprodução Luiz Alfredo/O Cruzeiro/Fundação Municipal de Cultura de Barbacena)

Para dar conta dessa demanda, as camas foram trocadas por capim, a alimentação era restrita, assim como a água. Muitos internos tomavam seus banhos no esgoto a céu aberto e viviam sob nenhuma dignidade, sofrendo maus-tratos, passando frio e suscetíveis a diversas doenças.

O cemitério municipal, inclusive, não suportava a quantidade de mortos que vinha do local. Com isso, houve um momento em que funcionários passaram a enviar corpos para as faculdades de Medicina, de maneira ilegal, para serem usados nas aulas de anatomia.

O fim do Hospital Colônia de Barbacena

As denúncias de violações de direitos humanos e as imagens chocantes divulgadas pela imprensa e por ativistas contribuíram para sensibilizar a opinião pública e pressionar por mudanças.

Em 1961, a revista O Cruzeiro trouxe uma reportagem Hospício de Barbacena - Sucursal do inferno, com as fotos de Luiz Alfredo. Mais tarde, em 1979, o jornalista Hiram Firmino publicou no jornal O Estado de Minas uma série chamada Os porões da loucura, que também virou livro.

Nos anos 1980, então, o Hospital Colônia de Barbacena deixou de existir naqueles moldes. Os pacientes, então, foram transferidos para outros tipos de atendimento, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e serviços de saúde mental comunitários.

Atualmente, com o nome de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), a instituição abriga alguns pacientes em regime de longa permanência, mas trabalha com foco na reabilitação psicossocial dentro do projeto de desinstitucionalização.

Além disso, presta assistência especializada a pacientes com transtornos mentais em fase aguda, além de oferecer ambulatório com atendimento ao público externo e a egressos do CHPB.

Em um prédio à parte, fica o Museu da Loucura, inaugurado em agosto de 1996, com fotografias, objetos, instrumentos médicos, roupas e outros itens que contribuem para manter viva a memória de quem passou pelo Colônia.

Repertórios para a redação sobre luta antimanicomial

Este artigo reuniu diversas reflexões, dados e fatos que podem servir de repertório sociocultural para usar em uma redação sobre o tema da luta antimanicomial. Entre eles, estão:

  • O livro Holocausto brasileiro (2013), da jornalista Daniela Arbex;
  • A “Carta de Bauru”, ou “Manifesto de Bauru”, de 1987, que pedia uma sociedade livre dos manicômios;
  • Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001), que garante os direitos das pessoas com transtornos mentais e estabelece diretrizes para o tratamento humanizado e comunitário;
  • As reportagens Hospício de Barbacena - Sucursal do inferno, com as fotos de Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, e Os porões da loucura, de Hiram Firmino, para o jornal O Estado de Minas;
  • O documentário Holocausto brasileiro (2016), disponível na Netflix, e a série Colônia (2019), da Globoplay;

Podemos citar ainda:

  • O livro Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde (2024), escrito pelo poeta Ferreira Gullar, com fotografias e vários momentos da biografia de Nise;
  • O filme As vantagens de ser invisível (2012), baseado na obra de Stephen Chbosky, que conta a história de Charlie, um garoto que precisa lidar com o suicídio do melhor amigo sua própria doença mental, enquanto tenta se encaixar na sociedade.
Banner SuperMED

TEMAS:

avatar
Carol Firmino

Jornalista e doutora em Comunicação pela Unesp. É editora no blog do Aprova Total e está sempre antenada ao universo da educação, com foco no Enem e na preparação para os grandes vestibulares do país. Tem passagens por Nova Escola, B9, UOL e Época Negócios.

Ver mais artigos de Carol Firmino >

Jornalista e doutora em Comunicação pela Unesp. É editora no blog do Aprova Total e está sempre antenada ao universo da educação, com foco no Enem e na preparação para os grandes vestibulares do país. Tem passagens por Nova Escola, B9, UOL e Época Negócios.

Ver mais artigos de Carol Firmino >

Compartilhe essa publicação:
Aumente sua nota TRI estudando com provas anteriores do Enem!
Baixe já o aplicativo do

Veja Também

Assine a newsletter do Aprova Total

Você receberá apenas nossos conteúdos. Não enviaremos spam nem comercializaremos os seus dados.