Carolina Maria de Jesus: conheça a vida e a obra da autora
Sua narrativa revela a força, a resiliência e a voz dos excluídos e marginalizados; confira como seus livros caem no vestibular
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Carolina Maria de Jesus é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Sua importância vai além das páginas de seus livros, ao ecoar nas discussões sobre a realidade social, racial e de gênero no Brasil.
As obras Quarto de despejo (1960) e Diário de Bitita (1982), por exemplo, revelam a força, a resiliência e a voz dos excluídos e marginalizados. Sua narrativa é permeada por uma perspectiva única, fruto de suas próprias experiências como mulher negra e moradora de favela, o que confere autenticidade e relevância às suas palavras.
Neste artigo, exploraremos a trajetória de Carolina Maria de Jesus, curiosidades sobre sua vida, suas principais obras e como elas aparecem nas questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e dos vestibulares em geral.
NAVEGUE PELOS CONTEÚDOS
Quem foi Carolina Maria de Jesus
A autora teve uma trajetória intensa que moldou sua vida enquanto escritora e impactou diretamente a produção de seu livro de maior sucesso, Quarto de despejo. Para entender melhor a história de Carolina Maria de Jesus, vamos abordá-la em três partes: infância, a dura realidade em São Paulo e o encontro com a escrita, ou seja, sua vida como autora.
Infância
Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, em uma comunidade rural no município de Sacramento, interior de Minas Gerais. Seus pais eram descendentes de escravizados e analfabetos. Já a autora fez apenas dois anos de ensino escolar, mas continuou aprendendo a ler e a escrever por conta própria.
Sua infância foi marcada por desafios, como a necessidade de trabalhar desde cedo para ajudar no sustento da família, o que refletiu em sua escrita posteriormente.
Não existem muitos detalhes sobre a infância de Carolina, pois ela mesma escreveu pouco esse período em suas obras autobiográficas. A maior parte das informações deriva de relatos de pessoas próximas e de pesquisas sobre sua vida, que mudou drasticamente com a mudança para São Paulo, capital.
A dura realidade em São Paulo
Após a morte da mãe, em 1937, Carolina mudou-se para São Paulo. Tempos depois, grávida e sem emprego, precisou ir morar em um barraco na favela de Canindé, uma das mais antigas da cidade.
Sua realidade era muito precária, uma vez que não havia energia elétrica e sempre aconteciam inundações por causa das chuvas.
As economias da família vinham do trabalho de Carolina como catadora. Com isso, ela conseguia trocar papel, latas e garrafas por moedas. Entretanto, o dinheiro ainda era muito escasso, fazendo com que ela precisasse vasculhar o lixo para conseguir alimentar a si mesma e a seus três filhos.
Nessa época, São Paulo tinha registrado algo em torno de apenas cinco favelas, o que fazia desses locais um acontecimento recente na cidade.
Por isso, Quarto de despejo, sua publicação mais famosa, se torna uma obra singular, com relatos de vivências quase inéditas para a população da época. O título é uma referência à crença da autora de que a favela era uma espécie de “quarto de despejo da sociedade”.
O encontro com a escrita
Carolina foi “descoberta” pelo jornalista Audálio Dantas, que estava trabalhando numa reportagem sobre a favela do Canindé, na época, a maior de São Paulo. Ele viu a autora discutindo com vizinhos, ameaçando colocá-los em seu livro, o que despertou seu interesse.
A autora, então, mostrou ao jornalista seus cadernos com o diário, e ele a ajudou a publicar Quarto de despejo: diário de uma favelada.
Com o sucesso do livro, Carolina foi convidada para eventos em universidades, premiações e até mesmo entrevistas na rádio e na televisão. Além disso, lançou um álbum com músicas que compunha no seu dia a dia na favela. Conseguiu, enfim, sair de Canindé e mudou-se para Santana, um bairro de classe média alta em São Paulo.
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Sua publicação seguinte, Casa de alvenaria (1960), também um diário, mas, dessa vez, relatando sua vida após deixar a favela, foi um fracasso editorial. Enquanto Quarto de despejo retratou uma realidade até então desconhecida, o novo livro reuniu críticas sociais da autora, pautadas nas frustrações de Carolina ao não encontrar uma situação, de fato, melhor fora de Canindé.
Diante das frustrações que teve com a vida na cidade e com o mercado editorial, Carolina mudou-se novamente, agora para um sítio. Foi neste lugar que a autora veio a falecer, por problemas respiratórios, em 1977.
Obras de Carolina Maria de Jesus
Confira a lista de principais obras da autora, além das obras póstumas, isto é, publicadas após a sua morte:
Principais obras
- Quarto de despejo (1960): uma narrativa visceral, em formato de diário, que retrata a realidade da favela do Canindé. Tornou-se um marco na literatura brasileira.
- Casa de alvenaria (1961): relatos em forma de diário sobre seu dia a dia após sair da favela e morar em um bairro de classe média.
- Pedaços de fome (1963): romance ficcional, aborda a questão da fome e da miséria.
- Provérbios (1963): compilado de provérbios escritos pela autora baseados nas suas vivências e visão de mundo.
Obras póstumas
- Diário de Bitita (1982): livro autobiográfico que narra a vida de Carolina durante a infância até pouco antes de se mudar para São Paulo.
- Meu estranho diário (1996): apanhado de relatos da autora em três momentos diferentes da sua vida - o dia a dia na favela do Canindé, o período morando em Santana e, por fim, a experiência vivendo no sítio.
- Antologia pessoal (1996): é um livro de poesias. Era uma grande vontade da autora publicar seus poemas, mas ela não conseguiu em vida.
- Onde estaes felicidade (2014): publicado no centenário do nascimento da autora, a obra reúne dois textos inéditos, além de artigos escritos por estudiosos de sua obra.
Fatos e curiosidades sobre Carolina Maria de Jesus
Confira outras informações sobre a vida e obra de Carolina:
- Carolina já tentava publicar seus livros muito antes de conhecer Audálio Dantas.
- Além dos diários, a autora escreveu romances, poesias, provérbios e peças de teatro.
- Muitos dos seus escritos ficaram de fora da versão final de Quarto de despejo, pois Carolina tinha um total de 38 cadernos com textos e anotações.
- Alguns dos livros de Carolina foram editados sem a permissão da autora. Por exemplo, o seu único romance publicado em vida, Felizardo, teve o nome alterado para Pedaços da fome.
- Em 2021, a UFRJ concedeu o título de Doutora Honoris Causa a Carolina Maria de Jesus como forma de reparação pelo seu esquecimento como autora quando ainda estava viva.
- Ela já enfrentou críticas e preconceitos de alguns intelectuais devido à sua origem humilde.
- Quarto de despejo foi publicado durante o governo de Juscelino Kubitschek e é a obra mais vendida da autora.
(Imagem: Domínio público/Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã)
Quarto de despejo: resumo e análise
Como já vimos, Quarto de despejo se tornou a obra de maior sucesso da autora. Diante disso, é frequentemente lembrado por grandes vestibulares do país.
Visão geral da obra
O diário foi escrito entre 1955 e 1960, contendo relatos pessoais sobre a dura realidade que Carolina enfrentava na favela do Canindé. A situação era um reflexo do que muitos brasileiros encontravam ao se mudarem para São Paulo em busca de melhores condições de vida.
Traduzido para, pelo menos, 15 línguas, teve sua primeira edição esgotada em três dias. As sessões de autógrafos também eram muito disputadas, já que alguns trechos foram publicados em revistas, despertando o interesse do público. O livro ainda se tornou best seller em 11 países e ganhou elogios do New York Times.
Resumo e análise do livro
No diário, Carolina oferece uma visão do Canindé e destaca a própria favela como uma metáfora do sofrimento e das desigualdades sociais. O fio condutor da narrativa é a rotina exaustiva da autora como catadora de lixo, uma atividade necessária para a sobrevivência de sua família.
O trabalho se revela quase que como uma nova forma de escravidão imposta pela pobreza e pela fome. Dessa forma, a escrita surge para ela como resistência e um jeito de escapar da realidade.
Nesse contexto, Carolina oferece uma percepção política, social e cultural da periferia, ao evidenciar as complexidades e as injustiças presentes nas estruturas sociais. A obra também aborda o papel da mulher no século 20 e demonstra a luta feminina para romper com as expectativas sociais.
Além disso, a autora joga luz sobre o papel das minorias raciais, com relato de suas experiências únicas e as barreiras enfrentadas por esses grupos na sociedade da época.
O livro apresenta uma visão determinista ao explorar a dinâmica social da favela do Canindé. Por exemplo, durante a narrativa, a autora sugere que, ao integrar-se nesse ambiente, pessoas de classes sociais mais altas absorvem os costumes locais. Isso ressalta a influência do contexto na formação da identidade.
📘 Quarto de despejo pode ser considerada uma obra multifacetada que transcende a narrativa pessoal, tornando-se uma janela crítica para as questões sociais, políticas e culturais da época.
Como a vida e a obra de Carolina Maria de Jesus caem no Enem e nos vestibulares
Carolina Maria de Jesus compõe o hall de grandes nomes da literatura brasileira devido à importância da sua obra e o impacto que causou (e ainda causa) na sociedade. Ela se tornou mundialmente reconhecida e é tema de teses em diversas universidades internacionais. No Brasil não poderia ser diferente.
A vida e a obra da autora aparecem muito nas provas de vestibulares e no Enem. Quarto de despejo já fez parte da lista de leituras obrigatórias de grandes bancas do país, como Unicamp, UFRGS, UFSC e UFPR. No Enem, a autora não apareceu somente nas questões da área de Linguagens, trechos de sua obra serviram de base para questões de Sociologia, por exemplo.
Confira a seguir questões que exemplificam como a obra da autora foi cobrada nas provas.
Exemplo 1
(UFPR 2023) Considere o seguinte texto:
… As vezes mudam algumas famílias para a favela, com crianças. No início são iducadas, amaveis. Dias depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes que transformam em chumbo. Transformam-se em objetos que estavam na sala de visita e foram para o quarto de despejo.
(JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. p. 38.)
A respeito de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, considere as seguintes afirmativas:
- Carolina acredita que a vida na favela é perniciosa para a formação das crianças, porém, como ali não chegam informações relevantes sobre a vida pública, ela é incapaz de emitir opiniões políticas ou de se revoltar.
- João, José Carlos e Vera tendem a se “transformar em chumbo” porque, ao priorizar a escrita e divulgação de seu diário, Carolina muitas vezes descuida das atividades domésticas e da atenção aos próprios filhos.
- A metáfora “quarto de despejo” é repetida em várias passagens do diário para significar a exclusão, o não pertencimento a espaços em que a dignidade da vida humana estivesse garantida.
- Palavras escritas sem obediência à norma padrão aparecem com frequência, porém os raciocínios que a autora elabora são complexos e o cotidiano é muitas vezes descrito com lirismo.
Assinale a alternativa correta.
a) Somente a afirmativa 2 é verdadeira.
b) Somente as afirmativas 1 e 3 são verdadeiras.
c) Somente as afirmativas 3 e 4 são verdadeiras.
d) Somente as afirmativas 1, 2 e 4 são verdadeiras.
e) As afirmativas 1, 2, 3 e 4 são verdadeiras.
Resposta: [C]
Contrariando a afirmativa 1, Carolina expressa opiniões sobre a atuação do governo e se revolta com as condições precárias de vida na favela, demonstrando sua consciência política. Além disso, com a leitura do livro é possível perceber que Carolina foi uma mãe atenta e participativa na vida de seus filhos.
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Exemplo 2
(Enem)
10 de maio
Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão amavel, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. […] O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidade de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: se ele sabe disto, porque não faz
um relatorio e envia para os politicos? O Senhor Janio Quadros, o Kubstchek, e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.
… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.
JESUS, C. M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
A partir da intimação recebida pelo filho de 9 anos, a autora faz uma reflexão em que transparece a
a) lição de vida comunicada pelo tenente.
b) predisposição materna para se emocionar.
c) atividade política marcante da comunidade.
d) resposta irônica ante o discurso da autoridade.
e) necessidade de revelar seus anseios mais íntimos.
Resposta: [D]
A menção à amabilidade do tenente, que buscava retratar-se como um homem compreensivo e familiarizado com as causas do sofrimento na comunidade, é irônica. Isso ocorre porque a sua associação da delinquência ao contexto da favela evidencia um preconceito social enraizado.